terça-feira, 1 de novembro de 2011

Espectro


Talvez por pressa, talvez por brincadeira, talvez por esquecimento, talvez até como experimento, mas o fato é que um deus o fez um esboço. Com ele ainda inacabado, deu por concluída a obra e entregou-lhe, tal qual uma pergunta, ao mundo.
Nunca foi resposta, nunca foi chegada, nunca foi destino.
Inexistiu, a priori.
Por vezes se enganava ao ver, de si, uma sombra, como se finalmente houvesse alguém ali, mas havia apenas a sombra, no máximo um espectro.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Gênesis

Da sua língua, que passeava livre,
nasciam os contornos da minha boca.
Enquanto suas macias e quentes mãos rascunhavam meu rosto,
de suas roupas, de você libertas, brotava minha alforria.
Siameses ventres,
em qual peito batia meu coração?
Eu nasci de você e eu nem era prá ser,
se é que fui.

"Primeiro, não havia nada"

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Hot-ina


Esperava um desdobramento, uma realidade que, de repente, cismasse de acontecer, uma faísca errante que achasse seu elemento à beira da combustão. Via a vida à beira da combustão, como se fosse esse seu rumo e houvesse algo sustentando-lhe a inércia, mas haveria um fraquejamento, pensava, haveria um relaxamento nessa sustentação artificial e tudo tomaria seu curso, em avalanche, mas era meu conceito quem ruía, dia-a-dia.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Música ao amanhecer


Era um finzinho de madrugada
na boca um traço daquele tinto cuja garrafa jazia ao lado da cama,
no coração um calor que lhe brotava na face,
e a satisfação de uma fome desconhecida até então.
Naquele momento descobriu-se suficiente,
gostava e queria aquela companhia,
mas não precisava mais dela.
Ao longe escutou uma batucada aproximando-se,
fechou os olhos imaginando na pele um toque leve e delicado,
pétalas,
esqueceu no rosto o sorriso enluarado,
mais forte, o ritmo batucava na calha de casa
e o cheiro úmido da generosa embalou-lhe em mais um sonho.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Vc é mais do que uma borboleta azul???

Eu, era apenas uma daquelas borboletas azuis que brincavam no jardim daquela casa!

Já havíamos passado por esse inferno da outra vez - olhando daqui parece ter sido muito mais fácil daquela vez -  estávamos nós novamente tentando adivinhar o que poderia ser modificado para abrandar-lhe o sofrimento, para devolver-lhe o ânimo, mas nada parecia demovê-la da determinação de ir-se, via-se no caminhar, desconfortado e reticente, que ela sedia pouco a pouco à morte que lhe espreitava pela segunda vez, sua enfadada tristeza ficava registrada na poeira sobre os moveis, no olhar oblíquo, na vagareza e imperfeição dos movimentos. Nas raras vezes que nos olhávamos, seu olhar era opaco, indiferente. Deixou de responder, não mais conversávamos, só resmungava quando lhe pegava de mal jeito para coloca-la numa posição que supunha ser-lhe melhor. Deitada ficava o dia todo, mas dormia pouco, não relaxava a cabeça, como se fosse uma espécie de última resistência, deitada, mantinha a cabeça desconfortavelmente levantada. Vigiava seus domínios.

No dia-a-dia, na convivência, ela era chata, exigente, suas manias esquisitas me incomodavam um pouco. Com o tempo deixei de pensar se ela gostava de alguém ou não, eu via apenas indiferença na forma como se comportava, na maneira que ela tinha de exigir o que queria, como impunha-nos suas rotinas. Mantinha sempre distância segura dos afetos, não sabia lidar com eles e sentia-se violada quando lhe eram impostos. Ruídos bruscos a assustavam, ruídos contínuos a atraiam.

Era uma graça quando corria atrás do vento, quando escondia-se à sombra, quando escalava. Parecia chamar, quando me puxava a blusa, quando mordiscava-me a mão. Tolerava bem que eu esfregasse a cara em sua cara, aceitava-me a seu lado na poltrona, vigiava-me para que eu não fizesse nada de errado. Adorava a vista das janelas, temia os pássaros rápidos, fascinavam-lhe movimentos brandos.

Passeava calma pelo quintal, tinha seus lugares prediletos, esquecia-se brincando com os insetos que se aproximassem incautos e, ainda agora, acho que pra ela, eu era apenas uma daquelas borboletas azuis que brincavam no jardim daquela casa, mas que assim seja, eu não me importo, e queria que ela vivesse pra sempre, mesmo sabendo que pra sempre é muito tempo.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

.


é como uma penumbra que vai descendo calmamente pelos olhos
como um amargo que vagarozamente domina o paladar
um nó impossibilitando a passagem das palavras
um aperto que imobiliza o coração
uma fome oca de um tempo ido
um desejo minguado
uma certeza manca
ausência.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Gula

SoberAnna, estava acima das outras mulheres, alias, insAnna, não enxergava outras mulheres, havia ela e as outras pessoas.
Homens, mulheres... sentia indiferença quanto ao sexo dos outros, havia apenas o seu sexo.
CigAnna, também lhe era irrelevante a origem e o mesmo com relação à idade, religião.
TirAnna, possuia as outras pessoas, intensa e unilateralmente, comia-lhes a vontade, voraz, engulia-lhes sem pudor, fagocitava-as.
SacAnna, gostava de um trabalho bem feito.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Não Beberás!


Nunca diga: "Desta água, não beberas" 
Este é pior que o outro, mais comum, ditado, 
já que deixa implícito seu desejo em ser bebida 
e o esfrega a minha boca, agora, sedenta. 
Te valoriza por certo, 
me deixa à espreita de teu vacilo (ou seria o meu?) 
"Não beberás!" repete, para certificar-se que tenha sido dito, 
e sente-se confortada por decreta-lo, de forma eloquente. 
"Não beberás!" repete, enquanto dispo-lhe. 
"Não comerás!" agora já sem força, 
"Não dormirás!"

sexta-feira, 4 de março de 2011

Tarde


Era a tarde
eu dizia que ela não chorasse assim
ela sequer ouvia e seguia chorando
se desmilinguia sob um som qualquer
revivia as alegrias de um passado não muito distante
eu a lembrava o quanto era importante ter algo pelo que chorar
mas sabemos como as coisas ficam nessa hora
ela queria apenas que se acabasse
que aquele aperto no peito encontrasse seu caminho 
e esvair-se em lágrimas parecia fazer parte desse processo de expurgo, 
de exoneração, 
como um pecado que precisasse ser expiado 
isso lhe machucava mais
insistia não haver pecado
não haver erro
não haver culpa 
mas quando se perde, tudo parece um erro
quem, finda a batalha perdida, ergue a espada e brada seus acertos e certezas? 
tudo é erro nessa hora
a derrota entremeava os minutos 
espichando ainda mais as horas 
e infinitando-lhe a dor
a tarde chorava compulsivamente 
procurando nos sapatos, todos iguais
seu caminho, agora, indiferente.