domingo, 21 de fevereiro de 2016

Na Bela Cintra

Foto: Clemente Meyer

     A Bela me olhava de fora, pela janela fria, espantada com minhas cores arroxeadas e olhos piscantes.
Minha cabeça pendia da cama e dos nossos lábios embotados, brotava um cheiro frio de cigarros amanhecidos.
     Jaziam assuntos velhos em garrafas esparramadas que, sem rolhas, permitiam que entornassem  misturando-se às novas queixas.
     Eu queria era olhar a torre de outras janelas e já estava "naquelas" de que "foi melhor assim", mas ainda não era "assim".


     Sobrevivemos bem por um tempo, lá um tapa frouxo já servia para abreviar a discussão indesejada. De certa forma evoluímos e as brigas já partiam de um ponto bem mais baixo.
Sem a necessidade de justificar nada a pancadaria comia quente.
   
     Depois a foda, prá selar a guerra.
   
     Sempre achei que o problema foi que não tivemos um começo, partimos do meio.Nunca soube como fui parar na cama dela.Não tínhamos telefones, não tínhamos passado, não tínhamos nomes, ela me chamava Campari, o fundo vermelho ressaltava o azul dos meus olhos, ela dizia.
     No final da primeira noite, quando sai, ela ainda dormia, por algum motivo anotei o número do apartamento, 121, da entrada principal anotei o número do prédio, 514, e caminhei até a esquina para descobrir a rua "caralho, é aqui que fica a Bela Cintra!".
     De bobeira uns dias depois toquei lá, a porta abriu, subi, meti, desci, num outro dia novamente e assim foi indo, às vezes a porta abria, às vezes não; Quando não, às vezes eu ia embora, às vezes eu ficava esperando, às vezes eu dava um rolezinho e voltava, só umas 2 ou 3 vezes fiquei chutando até que ela abrisse.

     Nos completávamos, ela não tinha onde ir, eu não tinha onde ficar.

     Era uma mistura de anti-amor com anti-prazer, nos tratávamos mal, sempre muita dor, muito rancor, juntávamos a raspa do que ninguém mais queria para o outro.
Nas gavetas da cômoda guardávamos os restos do coração, cérebro, dos rins, do fígado entre chás, pós e pílulas.


     Gostava de ficar deitado de costas, atravessado na cama, a cabeça pendurada mirando as torres da Paulista, foi nessa posição que eu morri.

     Ela achou que eu deveria tomar mais vinho, "Vá a merda, não vou levantar daqui" gritei, ela entendeu que uma coisa não excluía a outra e começou a virar a garrafa em minha boca de morcego, encheu minha cabeça de vinho, literalmente, me sufocando, eu não conseguia respirar, comecei a me debater, tentava sem sucesso puxar o ar. Ela achou que eu estivesse zoando, quando pulou em cima de mim para socar-me o peito eu já a via de cima, pelas costas - a única coisa que me incomodava era o silêncio absurdo - enquanto eu flutuava, ela me batia, socava, puxava-me os cabelos, chacoalhava, correu ao telefone falou e gesticulou, correu até meu corpo, eu não estava, voltou ao telefone e depois de mais algumas frases começou a bater com o telefone na cômoda, em seguida na sua própria cabeça até que arremessou-o contra a parede, deitou-se sobre mim e ficou me chamando, quebrando o silêncio. Primeiro era uma voz fininha, baixa e truncada, que foi ganhando corpo e volume até tornar-se um grito ensurdecedor que me resgatou, cai prá meu corpo e depois de uma tossida feroz, que gerou um spray de vinho e morte, o ar entrou queimando em meu peito.

     Ela levantou num sobressalto, depois de manter-se atônita por alguns instantes, pegou minha cabeça e apertou forte contra o seio, ela só soluçava, não conseguia falar, eu ainda não conseguia respirar direito, mas seu peito quente e seu coração ligeiro me remeteram aquele mesmo silencio, só que agora ele era confortável, morno. Ela afastou um pouco minha cabeça, ajeitou meus cabelos e em meus ouvidos pediu desculpas, me beijou o rosto e já ia me alojando novamente no seio quando eu segurei e disse:

     - Quer namorar comigo?

     E ela respondeu:

     - Só se for prá sempre.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Carta #1


Oi Baby,

Sou eu de novo, pensando em você, de novo, como se eu estivesse no ônibus da volta do trabalho, de novo, procurando seus pés em meio a sapatos tristes, de novo.
Só que eu não estou voltando do trabalho - pedi as contas - é só uma analogia, já que meu corpo está balançando, como quando eu voltava do trabalho.

Além do trabalho, abandonei a terapia, o futebol e o curso de escrita. Há tantas coisas que não posso fazer sem você, mesmo nas que você não me acompanhava, sentia sua falta, na ida e na volta. Parei de ir.
Doei o cachorro na terceira vez que ele latiu seu nome, já tinha avisado nas outras duas.
No suco verde de hoje cedo, moí a última violeta.
Os lençóis e fronhas com seu cheiro, os panos de prato com desenhos, as passadeiras da cozinha, despachei, enrolados no tapete da sala.
O sofá ficou bem magrinho sem aquele tecido macio, que lembrava sua pele.
Não sabia direito quais eram meus livros e quais eram os seus, quais eram os meus discos e quais eram os seus, quais eram os meus remédios e quais eram os seus:
Eles sim, agora estarão juntos para sempre.

Pensei em te mandar a parede da sala, onde escrevi uma carta bonita um dia desses.
Desenhei corações na porta do nosso quarto.
Não leia o que está escrito na porta do banheiro.
Retirei as lâmpadas da casa toda e cada vez que recorro ao interruptor ouço aquele cleck, como um coração que se parte e o complementa a escuridão que não afrouxa.

Daqui vejo a rua ainda úmida da chuva que caiu de algum olhar, as luzes já acesas criam sombras e as pessoas somem ao passar por elas, só uma ou outra reaparece do outro lado.
Vou mais para a beirada do parapeito, agarro firme a janela e me inclino pra frente, procurando pelo fim da sombra.
Lembro quando você saiu daqui batendo a porta, em segundos já atravessava a rua correndo, sumiu dentro daquela sombra grandona e não apareceu mais.
Quase serviu de desculpa prá te ligar naquela noite mesmo, mas me segurei.
Agora, ainda estou me segurando.

Sinto-me num pendulo com o mundo indo e voltando, noto alguns poucos olhares preocupados, não ligo.
Ligo pra pouca coisa, sobrou muito pouco.
Parece que eu tenho tanta coisa prá te dizer, mas tudo me escapa, tudo fica tão insignificante diante do volume enorme que faz esse buraco que encho de sua falta.

eu não tenho volta.

Caio F.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Espelho


Acontece muito mais hoje quando encaro o espelho:
Eu mexo o olho e vejo ele mexendo o olho.
Eu faço cara feia e vejo ele fazendo cara feia.
Eu levanto as mãos para o céu e vejo ele levantando as mãos para o céu - como ele nunca faria.

Encontro fácil em mim a vocação para o ócio, embora eu não partilhe da aversão ao trabalho.
Suas palavras eram raras e duras.
Por muito tempo achei que ele era triste, mas não, ele tinha uma ideia muito particular de felicidade.

Foi engraçado seu jeito de se tirar da nossa vida. Mudando-se para noite, desabitou nosso dia.
Ausentou-se o quanto pode, até esquecer o caminho de volta, deixando só um corpo com o olhar solitário e sem rumo.

Choro e ele também chora.

Tento abraça-lo mas nossos braços apenas se tocam.

Nosso sorriso é encantador e o obrigo a sorrir para mim:

- Dói?

"e me abracei na bola e pensei ser um dia
um craque da pelota ao me tornar rapaz
um dia chutei mal e machuquei o dedo
e sem ter mais o velho pra tirar o medo
foi mais uma vontade que ficou pra trás"
Espelho - João Nogueira

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Balaco-baco


Nosso véio era CB demais, ô cara do bem. Ficava na miúda, não falava muito, mas sempre ligado nos movimento!!! Não dava pinta de ser 13, calibroso que só a porra, sempre sussa, de boa, minha mãe fechava o tempo com ele:
- Tu é um baita muretão, não decide porra nenhuma e me deixa vendida nos lance.
A véia era o cão, puta que o pariu, se a coisa não tava nos trinques - Ah moleque! - ela tocava o terror prá cima da galera toda.
Tudo ia nesses conformes até que um dia o pai, mando fazer prá ele uma prancha.
Cê já tá imaginando o veião numa Long, não tá?
Sabe nada! O véio mandou vê numa Fun!!
Não brincou em serviço, uma fun de 6'5", triquilha de encaixe com ângulo aberto, fundo flat, wide point no meião, sob medida! Escolheu cor e o carai!
A mãe não boto uma fé - ixi mó kaô - soltou o verbo... e o outro só na dele, deixando ela falar, espernear. Ela praguejava o dia todo:
- Tu é um cabrerão, quero ver tu entra no mar com essa pitomba!!
- Tu é o maior prego que eu tô ligada!
- Esse mar vai virar uma marola só!
- Tu é bóia, vai passar vergonha.
- Só vai ter merreca prô teu lado.

Nossa casa era meio na perifa, mas pé na areia, 2 p tu tava na água: Aquele marzão grande, fundo e barulhento.
Quando o pai chegou em casa com a danada, todo mundo cresceu o zóio, ele ranco na hora a camisinha - a parada era nefasta - até a mãe ficou UAAAHHH na prancha do véio.
Sem alegria nem cuidado, ele vestiu o long john, foi até a porta, olhou aquele marzão e mandou:
- Nooossa, má tá gringo hein!!
O mar tava de cinema, umas onda bem formada, pouco vento, tava de rebenta o blindex.
A mãe ficou boladona, mas segurô o BO, mordeu os beiço e só falou:
- Tu qué ir, tu vai, mas aqui não vai ter 0800 não!
Todo mundo congelou, o véio suspendeu a resposta, olhou prá mim e disse:
- Aê.
E me chamou com a cabeça, fui até a porta e perguntei se eu podia tira uma chinfra também, ele me mandou um hang e deu linha, fiz que voltei, mas fiquei olhando, ele foi até a água e, sem olhar prá traz, foi indo mar adentro, primeiro pegou um jacaré, ai partiu para a arrebentação.
Nosso pai não voltou. A parte alguma também num foi, tava ali amarradão, só executava a invenção de se surfista, sempre dentro da água, para dela não sair, eu ficava de butuca, as vez ele pingava no outside dava um 10 e voltava. E ó, casca grossa viu, até respeitava os cara do point, mas num tinha haule que cortava onda dele não, ele ia de drop prá cima dos cara e sai de dentro que esse tubo é meu, os cara se picava de lá.
A parentada fico de bobeira, uns caipirão da porra, ficavam buzinando no ouvido da mãe que o véio "tava bilolado", uma tia dizia que era "feitiço", o irmão dizia que era doença, que tinha acontecido a mesma coisa com um primo deles que se pico prá dentro de um rio e do rio nunca mais saiu, era só groselha e minha mãe cada vez mais desesperada.  O fato corria a boca miúda dando conta de que na Bocadinha um novo rei do surf se criava, quando minha mãe escutou esse zum-zum, primeiro ela achou graça, um veião daquele "se criando", mas depois ralhou com o x9.
A mãe achava que tinha um ás na manga, coitada:
- Quero vê a hora que bate a larica nesse desgramado.
Mas não teve A nem B, o véi fico lá.
Passado uns 3 dias e o véio não saia da água, a gente chamava da praia, ele fazia que não ouvia, tentei ir atrás dele, mas ele foi se afastando eu fiquei com medo e voltei, nisso as vizinhas deram ideia na minha mãe prá de noite a gente acender umas fogueiras na beira da praia e ficar todo mundo junto rezando e conversando, que era capaz dele sair do mar para ver o que estava acontecendo. Assim fizeram - mas vê só que loco -  passado uma meia hora, começou um pinga-pinga de gente, umas mina levaram comida, uns cara levaram bebida, passou um tempinho, neguinho trouxe um back, colou um cara com o violão e tudo virou o maior luau, a mãe saiu pisando duro prá casa. Lá pelas tantas rolou um ninguém-é-de-ninguém, meu amigo!
Acabou, que começou a se tornar um evento repetitivo, toda lua cheia tinha luau e com todo aquele teretetê. Em casa eu não comentava nada, prá não suja, saia na miúda, depois que todo mundo dormia. Foi assim por um tempão, até que num desses dia aconteceu um negócio que me deixou gelado. Eu não tava chegando no point e dei de cara com a prancha de meu pai espetada na areia? Já fui procurando de cara em cara e nada de vê o cb, pintou até uma dúvida, será que eu não lembrava mais da cara do véio?
Pisquei e a prancha não tava mais lá. Fiquei de butuca na praia até o dia clarear prá eu vê se ele tava mesmo no mar, se não tinha sofrido algum acometimento, mas ele tava, lá lonjão.
Por conta do ocorrido acabei chegando mais tarde em casa e minha mãe, já levantada, começou a pesar na minha, ela não botou fé que eu não tinha ido na festa:
- Ah, tu num foi não abestado? Então venha cá que vou lhe cheirar.
Cheiro meu cabelo, cheiro minha camisa, cheirou minha orelha, meu nariz, minha boca, meu sovaco, Deus do céu tava vendo a hora que ela ia querer cheira meu cu! Pelo menos deu tempo de inventar uma história prá contar, se não ia acabar dizendo que tinha ido na festa:
- Ah mãe. Eu falei.
- Eu fui vê se o pai tava lá. Porque eu tava dormindo e sonhei que o pai saia da água de noite e ia dar uns rolezinho com a rapaize.
A mulher ficou branca, parecia que ia ter um troço - pior que no dia que ele foi embora - e mixou a conversa. Ela foi fazer as coisas dela mas se via que estava remoendo nossa conversa, fiquei preocupado, mas não teve jeito de volta ao assunto com ela, ela saiu antes do almoço e só voltou no finzinho da tarde - coisa que ela nunca tinha feito - voltou com ar de resolvida.
Fez a janta, deitou-se cedo e tudo correu tão normal nos outros 2 dia, dando pinta de que o problema tinha ido com a maré, mas no terceiro dia entregaram em casa uma caixona, a mãe fez cara de criança ganhando brinquedo.
Agora tô eu aqui sem saber que rumo dá prá minha vida. Da caixa aberta minha mãe tirou uma prancha de body board.
Disse só:
- Vô mais teu pai, cuida das criança.
E rapou de casa.
Deu ruim heim!

Inspiração: 3a margem do rio

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Casamento


De verdade, de verdade, de verdade, só se casa uma vez.
Muita coisa na vida é assim:
De verdade, só uma vez.
Cada vez mais as pessoas acreditam menos que seja assim
mas, independente da crença e da aparência, continuará sendo verdade.
Uma oportunidade única,
um tiro único,
por isso o tabu com as primeiras vezes, elas merecem.
Dentre as centenas ou quem sabe milhares de eventos inéditos
o casamento talvez seja o mais singular:
Duas pessoas se conhecem,
trocam seus números,
se encontram novamente
e trocam ideias,
voltam a se encontrar
trocam impressões,
trocam opiniões,
trocam gostos, vontades, carinhos
e trocam fluidos,
trocam pedidos,
até que um dia trocam sonhos e não haverá mais volta.
Nas segundas ocorrências há sempre a sombra da primeira,
o vestígio,
o bom e o ruim que fica prá sempre,
como uma marca,
um segredo,
uma bobagem qualquer,
que alguns chamam "saudade".


Fotografia: Carol Lancelotti (Absolem.co)