quarta-feira, 25 de maio de 2016

Carta #3


Oi Baby,

Faz tão pouco tempo que você me deixou
quase vejo seu vulto entre uma porta e outra.
Seu cheiro me busca para dormir.
Acordo à noite e ouço seu ronronar manso, de quem dorme sem culpas.
A vida era fácil a seu lado, seu jeito de ver as coisas mudava tudo.

Lembra quando falava que não me amava?
Eu fazia cara triste, ameaçava chorar
depois ríamos muito,
mesmo sabendo que nada daquilo era bricadeira, ríamos
e brincávamos de não saber.

No dia que você entrou em casa eu soube que você iria embora,
não havia o brilho do amor pra sempre.

Você deixou a bolsa sobre a cadeira da cozinha
revelando seu plano de fuga,
ficava claro que
mais dia, menos dia
deixaria tudo pra tras,
só levaria a bolsa e olhe lá.


Grã

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Coletivo

"Filho da Puta", era assim que o ônibus da linha 1525-S, Vila Cândida - Berrini, era carinhosamente chamado por seus passageiros.
- Cassete! Me atrasei, o Filho da Puta já passou?
Pergunta o rapaz chegando ao ponto, conferindo o atraso no relógio.
- Passou um lotado até a tampa.
Responde, com ar de lamento, a senhora que já se encontrava no ponto e sua filha complementa com uma análise precisa da situação:
- Nem adianta. Tava cheio pá porra!
O rapaz e a senhora continuam conjecturando sobre a condição precária do transporte coletivo, principalmente nos pontos mais afastados da cidade:
- Que bosta, isso que dá morar no cu do mundo!
- É, e ninguém dá a mínima pra gente.
- Nem me fale. O corno do meu chefe não quer saber, quinze minutos de atraso e já me corta o ponto. Engravatado de merda.
Passados vinte minutos, um novo hermético coletivo se aproxima. Os três respiram fundo. A mulher encara o rapaz e em seguida com a sobrancelha faz um sinal para a filha.
O veículo, completamente lotado, exige uma certa estratégia nas paradas:
O motorista faz a aproximação mantendo a velocidade com a qual vinha e, em cima do ponto, com gosto, afunda a botina no freio que zurra em homenagem ao condutor. A massa, que já estava no nível extremo de compactação, aproxima-se mais e num mesmo instante vários corpos passam a ocupar o mesmo espaço.
Meio degrau se oferece aos pretensos passageiros.
A mulher calcula com precisão aonde a porta vai parar, se ajeita de modo a oferecer ao rapaz o flanco direito. O rapaz não percebe a manobra e acha que conquistará a preferência de embarque, avança pela direita, ainda no segundo passo ele é interrompido, pela mulher com um leve "jogo de bunda", fica sem passagem não chegando à porta, habilidosa a filha avança pelo centro, mantém os pés bem juntos e finca posição no último degrau, como em um bailado a mulher coloca seus pés um de cada lado dos pés da menina, ambas seguram firme na barra de apoio e são agora o ponto de maior tensão no ônibus.
A multidão em refluxo tenta retomar o espaço cedido com a freada enquanto os candidatos a passageiros tentam um mínimo apoio para alavancar o ingresso.
Entra em cena o mediador-cobrador:
- Sem fechar a porta o ônibus não saí!
O desconforto é geral, todos tentam se ajeitar para possibilitar a maldita porta de fechar.
Do rapaz, os pés, ainda na calçada, já admitem a derrota, mas o braço, guerreiro, mantém-se firme segurando a barra e, sem sucesso, puxa o corpo para cima da mulher.
A porta começa seu trabalho psicológico ameaçando fechar: Tchhh tchuuu tchitchi tchuuuu.
Da massa surge a voz libertadora:
- Olha, o de traz tá vazio!
O rapaz se distrai para olhar, o braço falseia e a mulher deixa o peso do corpo fazer o resto do serviço: tchhhhh puffffff.
A porta se fecha, o tal ônibus vazio está indo para garagem, a mulher e a filha se olham e da calçada o homem ainda mantém o braço a meia altura, "Filho da puta", e em silêncio, já calcula o prejuízo no holerite.