"Filho da Puta", era assim que o ônibus da linha 1525-S, Vila Cândida - Berrini, era carinhosamente chamado por seus passageiros.
- Cassete! Me atrasei, o Filho da Puta já passou?
Pergunta o rapaz chegando ao ponto, conferindo o atraso no relógio.
- Passou um lotado até a tampa.
Responde, com ar de lamento, a senhora que já se encontrava no ponto e sua filha complementa com uma análise precisa da situação:
- Nem adianta. Tava cheio pá porra!
O rapaz e a senhora continuam conjecturando sobre a condição precária do transporte coletivo, principalmente nos pontos mais afastados da cidade:
- Que bosta, isso que dá morar no cu do mundo!
- É, e ninguém dá a mínima pra gente.
- Nem me fale. O corno do meu chefe não quer saber, quinze minutos de atraso e já me corta o ponto. Engravatado de merda.
Passados vinte minutos, um novo hermético coletivo se aproxima. Os três respiram fundo. A mulher encara o rapaz e em seguida com a sobrancelha faz um sinal para a filha.
O veículo, completamente lotado, exige uma certa estratégia nas paradas:
O motorista faz a aproximação mantendo a velocidade com a qual vinha e, em cima do ponto, com gosto, afunda a botina no freio que zurra em homenagem ao condutor. A massa, que já estava no nível extremo de compactação, aproxima-se mais e num mesmo instante vários corpos passam a ocupar o mesmo espaço.
Meio degrau se oferece aos pretensos passageiros.
A mulher calcula com precisão aonde a porta vai parar, se ajeita de modo a oferecer ao rapaz o flanco direito. O rapaz não percebe a manobra e acha que conquistará a preferência de embarque, avança pela direita, ainda no segundo passo ele é interrompido, pela mulher com um leve "jogo de bunda", fica sem passagem não chegando à porta, habilidosa a filha avança pelo centro, mantém os pés bem juntos e finca posição no último degrau, como em um bailado a mulher coloca seus pés um de cada lado dos pés da menina, ambas seguram firme na barra de apoio e são agora o ponto de maior tensão no ônibus.
A multidão em refluxo tenta retomar o espaço cedido com a freada enquanto os candidatos a passageiros tentam um mínimo apoio para alavancar o ingresso.
Entra em cena o mediador-cobrador:
- Sem fechar a porta o ônibus não saí!
O desconforto é geral, todos tentam se ajeitar para possibilitar a maldita porta de fechar.
Do rapaz, os pés, ainda na calçada, já admitem a derrota, mas o braço, guerreiro, mantém-se firme segurando a barra e, sem sucesso, puxa o corpo para cima da mulher.
A porta começa seu trabalho psicológico ameaçando fechar: Tchhh tchuuu tchitchi tchuuuu.
Da massa surge a voz libertadora:
- Olha, o de traz tá vazio!
O rapaz se distrai para olhar, o braço falseia e a mulher deixa o peso do corpo fazer o resto do serviço: tchhhhh puffffff.
A porta se fecha, o tal ônibus vazio está indo para garagem, a mulher e a filha se olham e da calçada o homem ainda mantém o braço a meia altura, "Filho da puta", e em silêncio, já calcula o prejuízo no holerite.
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